Wednesday, March 09, 2005

Atualização

Eu tenho tido pouco tempo para atualizar este blog. Na verdade nem sei se alguém ainda entra aqui para ler alguma coisa. Caso ainda haja algum visitante, vou pedir perdão porque hoje eu não vou escrever nenhum texto, não vou inventar historinha de ninguém e nem contar nenhuma experiência minha. Vou, sim, copiar um texto com a experiência de um colega de profissão ocorrida há um ano e 4 dias.

Engraçado isso. 2004 foi o ano que eu mais mudei ou ao menos em que a mudança em mim foi a mais visível. Há exatamente um ano eu recebi esse texto da mesma forma: encaminhado pelo Serginho, meu colega de trabalho. Passado um ano, ele faz a mesma coisa. Eu, mudado, reajo da mesma forma. Lacrimejo os olhos nos mesmos pontos, respiro fundo nos mesmos trechos, me angustio nas mesmas passagens.

Marcelo Firpo é publicitário, trabalha na Matriz, é uma pessoa muito gente boa e está completando um ano como pai. Na ocasião, ele escreveu o texto abaixo.

Uma excelente semana pra todos nós.

SANTIAGO

"Por onde se começa um relato desses? Pela manhã do dia, quando o simples fato de se acordar mais cedo do que de costume para se fazer um exame aparentemente desencadeia um processo de parto? Pelo meio-dia, quando, ao chegar em casa, ouço simplesmente a frase "a bolsa rompeu" e me sinto num filme? Pela ida para o hospital, com todas as coisas demonstrando uma nitidez quase insuportável? Ou talvez pelo nascimento propriamente dito, a mão da médica buscando alguma coisa dentro da barriga aberta da Giselle e saindo de lá com essa coisa, vermelha, enrugada, cheia de cabelo e estranhamente familiar? Não sei. Acho melhor começar do começo e ir avançando. Não que faça mais sentido, mas por ser mais fácil mesmo.

De manhã. Em vez de acordar e ir pro meu trabalho, deixando a Giselle e seu barrigão dormindo como tenho feito nas últimas semanas, faço força para acordá-la, obedecendo a um pedido feito na noite anterior. Ela tem um exame marcado para as 9 horas, não deu pra marcar mais tarde. Mais dia menos dia essa criança nasce, então é melhor fazer logo.

A duríssimas penas ela carrega seu barrigão até o banheiro, cozinha, roupeiro, sempre comigo empurrando atrás, vou dar uma carona. Rua. Ao atravessar, ela começa a sentir uma série de contrações. Será que é hoje? Quarta, 3 de março, aniversário do Mojo, bom augúrio. Eu tinha sonhado que ia ser ontem.

Deixo-a na frente do laboratório com as recomendações de sempre, "qualquer coisa, liga."

No trabalho, tenho uns cinco problemas pra resolver, mas não consigo entrar em nenhum deles. É como se eu soubesse que ia ser perda de tempo, que o que quer que eu fosse começar agora não ia terminar mesmo.

Ela liga: "Acho que é hoje mesmo, viu?" As duas mães, minha e dela, já foram chamadas, fico tranqüilo, organizando coisas. Chego em casa depois da uma e a primeira coisa que ouço ao abrir a porta é "A bolsa estourou." Uma suave irrealidade começa a tomar conta das coisas. Munidos de toalhas, descemos e vamos até o consultório da médica, e de lá pro hospital.

Tinha uma reunião às 14:30 e outra às 15:00. Depois de deixar Giselle e mãe no hospital, dou uma última passada no trabalho pra passar a bola pra alguém e começo a comunicar a esmo que o Santiago está pra nascer. As pessoas esperam que eu fique um pouco mais nervoso do que eu estou. Estou apressado, mas calmo, curtindo a situação toda. É legal chegar pra alguém e dizer: "Olha, preciso que tu me substitua nessa reunião, meu filho está nascendo neste exato momento, essas crianças, sabe como é..."

Na volta pro hospital é que começa o estranho fenômeno: uma sensação de que tudo parece mais vivo, mais nítido, mais forte. Uma jamanta carregada de carros cruza na minha frente em plena 24 de Outubro e eu perco vários segundos olhando maravilhado para a brutalidade daquilo, caçamba, cabine, pneus, carroceria, carros, correntes, parafusos, nunca olhei pra uma jamanta desse jeito. É como se fizesse sol depois de meses e meses de dias nublados, as cores gritam, nada parece fugir à minha percepção.

Hospital, o mesmo em que eu nasci. Depois de esperarmos em vão durante 3 horas por uma série de contrações fortes o bastante para causar uma dilatação, a médica decide por uma cesariana. Ficar mais de 12 horas com a bolsa rompida é perigoso, por causa do risco de infecções.

Giselle fica um pouco nervosa com a idéia de cirurgia e anestesia, ela não tem muitas no currículo. Digo que já fiz várias e acho até divertido, mas ela não se convence muito. Pelo menos vou poder ficar do lado dela na hora, falando besteira.

Rapidamente aparecem o anestesista e o resto da equipe, e vamos para a sala. Me sinto bem com o avental, mas a máscara me incomoda um pouco. Comento que começo a entender o porquê de usarem a palavra "parto" para coisas complicadas: já são 8 da noite.

À medida em que o processo avança, uma certa introspecção vai tomando conta de mim. Na verdade, sou dois: na superfície, um de nós conversa com a Giselle e responde às brincadeiras sobre Inter e Grêmio do anestesista; mais fundo, o outro espera, consciente de que a minha vida está para passar por um momento extremo, uma culminância.

Tem uma cortina protegendo a incisão do olhar da Giselle. Digo pra equipe que quero ver o bebê saindo da barriga e o anestesista brinca que se tiver que segurar pai desmaiando vai cobrar mais caro. Desmaiar? Perder um momento desses? Sem chance, tenho certeza disso quando levanto a cabeça para espiar do outro lado da cortina, bem a tempo de ver a médica buscar algo lá dentro da barriga e trazer para fora.

Cabelos. A primeira coisa que eu vejo é uma cabeça cheia de cabelos. Depois penso em vermelho. A criança está toda coberta por uma golesma esbranquiçada, mas é possível notar que por baixo a pele é absurdamente vermelha. Ele parece muito, muito brabo, quase peço pra colocarem de volta no lugar. Aí eu finalmente enxergo o rosto: olhos bem fechados, boca aberta num choro que começa a chegar aos meus ouvidos, um nariz minúsculo e grandes bochechas.

Eles levam o bebê para a sala ao lado, eu vou junto, pesam e medem, depois me dão para segurar. Tenho consciência de que esta é a primeira vez que eu faço isso. Pegar o meu filho no colo. Acho que é neste momento que cai de vez a ficha: sou o pai desse guri.

Com o Santiago no colo, volto pra sala de parto, onde Giselle chora na mesa de cirurgia. Coloco ele com todo o cuidado na frente do rosto dela. Não tenho como descrever essa cena sem ser muito piegas, então prefiro pular. Me limito a dizer que ela conversa com ele, e eu penso que todos os sacrifícios que ela fez nos últimos meses finalmente fazem sentido. Toma que o filho é nosso.

Depois disso eu levo a criança, ainda no meu colo, até a vitrine da maternidade, onde duas famílias aguardam. Eu achei que o grande momento tinha sido o nascimento, mas chegar na frente do vidro e ver todos explodindo de alegria também é muito forte. Olho nos olhos de cada um agora, mostrando o Santiago. Me demoro um pouco mais na minha mãe, o nome da criança é uma homenagem a uma das melhores pessoas que eu já conheci nessa vida, pai dela, meu avô. Onde estão as dúvidas que senti nos últimos meses? Onde está a insegurança, o medo de simplesmente não estar preparado pra ser pai? Converso com meu filho, sou o pai dele agora. Coloco o bebê sobre um bercinho, à vista de todos, e é então que começam os problemas: o pediatra me diz que a criança está fazendo força demais para respirar, e que se continuar assim vai ter que levar para o CTI, mas que ele não quer isso, prefere esperar um pouco.

Só aí é que me dou conta de que o final de cada expiração, muito curta, vem acompanhado de um pequeno gemido intermitente, doído. Ele não chora, talvez até porque todas as forças estejam concentradas nessa respiração sofrida, brigada. O médico aspira as secreções da boca e nariz, tentando desobstruir as vias respiratórias, mas não adianta. Calculo que ele respire umas 70 vezes por minuto, sempre gemendo. Fico ali com ele, sofrendo junto, puxando o ar junto, torcendo para que a situação se reverta nos próximos minutos, que de uma hora pra outra ele consiga
respirar normalmente e possa ser levado para perto da mãe, mas isso não acontece. Depois de um período de tempo que calculo em torno de 40 minutos, o médico me diz que o melhor é o Santiago passar um tempinho no CTI. Fico um pouco triste: queria muito que ele fosse para perto da mãe, sentisse de novo seu cheiro, as batidas do seu coração, seu calor, e dessa forma se acalmassem ambos. Mas não.

No CTI, me informam rapidamente das regrinhas do lugar e me avisam que posso entrar e sair a hora que quiser. Na verdade, sou a única pessoa da família que pode fazer isso, já que a mãe não consegue nem sentar, com a barriga toda costurada. A decisão de passar a noite por lá vem ao natural.

A noite é uma sucessão de idas e vindas, da salinha de espera com um sofá minúsculo de 2 lugares e guardas de madeira estrategicamente colocadas para que não se consiga deitar ao CTI propriamente dito, e vice-versa.

No começo toco bastante nele, converso e me comovo com a mais insignificante expressão facial, mas ao longo da noite me dou conta que isso o deixa mais agitado, então procuro me conter. Ele está num berço, embaixo de uma estufa, com soro e com a cabeça dentro de uma campânula transparente, que oferece uma concentração maior de oxigênio, 40%, do que a que normalmente respiramos, 21%. Parece um astronautinha.

Nas paredes do corredor do CTI, quadrinhos emoldurados, presente de pais agradecidos, contam a história de crianças que ficaram vários meses naquele lugar. Geralmente são compostos de uma foto do recém-nascido todo erradinho, magro e cheio de tubos e de outra, com o bebê em casa, sadio e sorridente. Os textos são escritos pelos pais, muitas vezes simulando a narração da própria criança: "Oi, meu nome é Tomás, nasci com 1600g, tive tal e tal complicação, passei 6 meses aqui, mas agora estou bem, em casa, com 4200g, graças ao empenho das enfermeiras etc etc etc". Leio todos eles, e uns dois ou três conseguem me atingir como uma voadora na pleura. Um deles começa com uma citação do Churchill: "Nunca, nunca, nunca se renda."

Quando me dou conta, o bar do hospital já fechou e tudo o que eu tenho para comer são duas trufas de chocolate. Tento dormir, não consigo, volto mais algumas vezes para o CTI e lá pelas três da manhã o cansaço me vence. São quatro e meia quando me acordo, depois disso não durmo mais.

Durante a noite, seguro a mãozinha dele várias vezes, sentindo o apertão instantâneo dos dedinhos que se fecham ao redor do meu dedo. Sei que é um espasmo natural dos bebês, sei que não é consciente, sei que ele seguraria com a mesma urgência o dedo de qualquer pessoa nestas condições, do pior criminoso do mundo até, mas não é ele que está aqui, sou eu.

De manhã Santiago tem uma ligeira piora, eles colocam um respiradorzinho direto no nariz, e eu sou aconselhado a ir para casa, dar uma descansada. Corcoveio um pouco mas acabo indo, e ao sair do hospital percebo outro fenômeno interessante: depois de uma noite em claro no CTI, ouvindo o choro e os gemidos do meu filho e de vários outros bebês, começo a ouvi-los por toda a parte. Abro uma torneira e o rangido se assemelha a bebê resmungando. Um carro freia ao longe e o som se assemelha muito a um começo de choro. Uma porta rangendo lembra um gemido. É como se os choros e ruídos de bebê já estivessem embutidos em todos os sons do dia-a-dia, mas só agora, com os ouvidos devidamente afinados, eu os percebesse.

Durmo.

Muito.

No fim da tarde volto ao hospital e Giselle finalmente consegue sentar numa cadeira de rodas. Tudo o que ela quer é visitar o filho. Desde o nascimento, no dia anterior, ela não passou mais do que dois minutos junto dele, e é tocante vê-los agora. Ele já está numa incubadora, ela abre a portinha, acarinha a sua cabeça e fala coisas simples e cheias de carinho. Ela repete várias vezes, olhos cheios d´água, a frase "Como ele é querido!", mas na verdade é como se dissesse "como ele é forte, como ele é corajoso, como ele luta pra respirar, pra ficar com a gente, pra ir pra nossa casa". Comovo.

Os dias vão passando, Santiago vai melhorando, a concentração de oxigênio fornecida para ele vai se aproximando dos 21%. Ele fica mais ativo, resmunga mais, arranca o soro da mão, tenta puxar a sonda da boca. Meu guri.

Cerca de uma semana depois do parto ele ganha alta e aí começa uma nova história, fraldas, mamadas no meio da noite, colos para arrotar, eventuais engasgos, preocupações-de-pais-de-primeira-viagem-que-um-dia-vão-ser-motivo-de-boas-risadas-mas-certamente-não agora e pequenas alegrias.

Quando ele sorri, por exemplo, eu me desmonto, mesmo sabendo que este ainda não é um sorriso consciente, social, que é mais um espasmo, que tem a mesma natureza de um peido ou de um arroto. Talvez seja justamente isso, a aleatoriedade da coisa toda, o pequeno milagre do teu filho sorrir, não necessariamente para ti, mas ao alcance dos teus olhos, que seja o mais bonito de tudo. A vida é caótica. Um ano atrás a última coisa que eu queria era ser pai; hoje me sinto de certa forma agraciado, quase
salvo, por esta oportunidade.

Uma última lembrança, ainda da época em que mãe e filho estavam no hospital e eu me acordava de madrugada para ir vê-los: são cinco horas da manhã, dirijo pela 24 e ouço a Ipanema. O refrão de um rap pergunta: "what´s love?"

Por alguns instantes eu acho que consigo responder.

- Marcelo Firpo